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Dois milhões de chilenos saíram às ruas no domingo (26), em uma gigantesca manifestação pelo fim do sistema privado de Previdência e em defesa de aposentadorias dignas, retomando o sistema previdenciário público, universal e por repartição. A maior manifestação ocorreu em Santiago, capital do país, onde, segundo os organizadores, um milhão de pessoas participou do ato.

A “Maior Marcha da História” do Chile, como foi chamada pelo grupo “No + AFP”, que organiza há anos a luta contra a previdência privada, foi considerada vitoriosa, e causou impacto na vida política do país – que está à beira de uma nova eleição presidencial. Houve enorme participação de diversas categorias de trabalhadores dos setores público e privado, além de estudantes e muitos idosos, que sofrem para sobreviver com suas minúsculas aposentadorias, chamadas por eles de “aposentadorias de fome”.

Luis Mesina, dirigente do Sindicato dos Bancários do Chile e porta-voz da organização No + AFP, em entrevista à imprensa chilena reiterou a necessidade de abordar a Previdência como política de Estado. “O Congresso e o governo não têm absolutamente nenhuma vontade de mudar a Previdência. A mudança só acontecerá na medida em que coloquemos muita gente na rua, e que sejamos contundentes e coerentes em nossas reivindicações”, afirmou.

Como funciona a Previdência chilena

Assim como em outras áreas, o Chile virou o laboratório das políticas neoliberais formuladas pelo economista estadunidense Milton Friedman, que, à época, afirmou que era necessária uma “terapia de choque” para privatizar rapidamente os serviços públicos chilenos. A previdência do Chile, então pública, universal e por repartição, foi transformada em um grande sistema de capitalização, que oferece pouco retorno financeiro aos contribuintes, mas grandes margens de lucros para os dirigentes das Associações de Fundos de Pensão (AFP).

Os trabalhadores chilenos realizam contribuições forçadas, destinando 10% de seus salários para as AFP, que funcionam de maneira similar aos fundos de pensão brasileiros, como o Funpresp. Quando se aposentam, os trabalhadores chilenos recebem aposentadorias menores do que os valores investidos ao longo dos anos. As AFP administram mais de 150 milhões de dólares provenientes dos salários dos trabalhadores, e utilizam esse montante para investir em empresas privadas ou em ações na bolsa de valores. As perdas dessas operações são socializadas entre os trabalhadores, o que faz com que muitos tenham que seguir trabalhando após a aposentadoria.

Com o crescimento dos escândalos envolvendo os dirigentes das AFP, que lucram enquanto realizam investimentos ilegais de alto risco com o dinheiro dos contribuintes, e com as aposentadorias cada vez menores, os chilenos passaram a protestar contra o sistema privado de previdência. Movimentos sociais e sindicais criaram a organização No + AFP (Não mais AFP), que, ao longo dos anos, ampliou seu poder de mobilização.

Em janeiro de 2017, o jornal El Desconcierto denunciou que as AFP investiram mais de 120 milhões de dólares (mais de R$ 380 milhões) nos últimos dez anos em operações financeiras ilegais. A maioria desse dinheiro foi investida em ações de alto risco, proibidas pela legislação previdenciária chilena. As AFP administram anualmente no Chile um valor semelhante à soma dos Produtos Internos Brutos (PIB) de Jamaica, Paraguai, Honduras, Bolívia, Eslovênia e Montenegro.

No + AFP

Em entrevista ao semanário chileno The Clinic, Luis Mesina, o porta-voz da organização No + AFP, explicou os motivos que levam o povo a lutar contra o sistema privado de previdência. Segundo Mesina, as AFP administram os 10% dos salários dos chilenos destinados mensalmente à previdência, e cobram uma comissão de 1,5% do total desse valor. “Isso representa uma quantidade enorme de recursos, o sistema permitiu que as AFP tenham uma rentabilidade gigantesca durante os últimos anos, e que paguem altos bônus aos donos dessas associações. Apenas em 2015, 45 diretores das AFP receberam 1,2 bilhões de pesos (o equivalente a R$5,7 milhões)”, critica o sindicalista.

“Parte importante do dinheiro das aposentadorias é investida no mercado financeiro estrangeiro, da maneira que querem os diretores das AFP. O dinheiro dos trabalhadores serve para financiar, por exemplo, a indústria do frango, as farmacêuticas, etc. Esse dinheiro também financia o sistema bancário, com juros quase inexistentes. Ou seja, o dinheiro da aposentadoria do trabalhador acaba sendo emprestado, com juros baixíssimos, aos bancos, que o emprestam de volta ao trabalhador, com juros de 40 ou 50%. É um negócio espúrio e que não condiz com um sistema de seguridade social, cujo objetivo deveria ser assegurar o acesso à saúde, e a ajuda em caso de velhice, desemprego e doenças”, completa Luis Mesina.

Para o porta-voz da organização No + AFP, o sistema de previdência privado está diretamente relacionado ao modelo econômico atual. De acordo com Mesina, com o fluxo gigantesco de capitais disponíveis para os grandes grupos econômicos, que concentram a propriedade de maneira brutal, foram construídas quase todas as indústrias do país que, além de tudo, destroem o meio-ambiente e exploram o trabalhador que acaba a financiando, pagando baixos salários.

“O sistema das AFP é um roubo. Quando foi criado, em 1981, foi prometido uma taxa de devolução, que é a porcentagem que um trabalhador recebe na aposentadoria em relação ao que ganhava na ativa, de 70%. Hoje, os trabalhadores não recebem nem um terço disso. Também se disse que o Estado não ia usar recursos públicos no sistema, mas ele é responsável por 62% dos valores. Falava-se que o sistema anterior, público, era deficitário, mas a maioria do sistema tinha superávit. Eram necessários ajustes, e não uma transformação estrutural, que só foi feita porque queriam se apropriar desse gigante volume de recursos dos trabalhadores e colocá-los à disposição do grande capital”, afirma o representante da No + AFP.

Luis Mesina defende a previdência pública, universal e por repartição. Para ele, os sistemas de repartição funcionam tendo como base as contribuições dos trabalhadores da ativa, que são utilizadas para pagar as aposentadorias. “Essa é sua essência, é um sistema integral que inclui assistência média, gera distribuição de renda na medida em que as pessoas envelhecem. É um princípio coerente com a concepção humanista, que é o oposto da concepção do sistema atual”, conclui o bancário chileno.

Do Andes, com informações de No + AFP, The Clinic, El Desconcierto e Prensa Opal. Imagem de No + AFP